Bacafá

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quinta-feira, 29 de abril de 2010

A desembargadora e o policial.

No primeiro capítulo do livro “A resistência”, seu autor, Ernesto Sabato, fala do quanto estamos perdendo nossa humanidade, nosso caráter de humanos. O quanto esquecemos de conversar, simplesmente, com as pessoas. O quanto achamos mais bonito ver um jardim pela tela de um computador em vez de passar os pés descalços na grama. O quanto esquecemos de apreciar o céu ou as árvores no caminho para casa. Isso faz lembra o quanto é importante, pelo menos de vez em quando, optar em ir a pé do trabalho para casa, ao viés de todos os dias utilizar o carro. É uma chance de conversar com os filhos, observar as casas, as ruas, os quintais. De carro, além de ser muito rápido, a concentração no trânsito não permite conversas mais profundas.

E algo que chama atenção na primeira parte do livro é a comparação que Sabato fez da televisão com as luzes acesas à noite. Nós estamos para a luminosidade da televisão como os insetos para a luminosidade das luzes. A televisão está nos tantanizando. E não estamos percebendo.

Mas o autor ainda tem esperança no ser humano. Tem fé que o homem possa mudar sua mentalidade e, consequentemente, mudar os rumos do seu destino.
Diz: “Apesar de tudo, como é admirável o ser humano. (...) Acredito nos cafés, no diálogo, acredito na dignidade da pessoa, na liberdade.”

Essa obra de Ernesto Sabato ilustra o lamentável incidente ocorrido na semana passada envolvendo uma desembargadora e um policial militar, divulgado em toda a imprensa. Para quem não acompanhou o caso, basta esclarecer, muito rapidamente, que o filho da desembargadora estava sendo autuado por estar com a documentação de seu veículo vencida (IPVA atrasado e multas). Ao que tudo indica, a desembargadora exigiu que veículo, ainda assim, fosse liberado.

Surgiu, então, a fatídica frase: “Você sabe quem eu sou?” E foi repetida, para espanto dos presentes (com tudo filmado por uma câmera de aparelho celular). Sendo a resposta negativa, a própria senhora respondeu: “Desembargadora do Tribunal de Justiça”. Um dos policiais militares, com a calma que deve reger as atitudes nestes momentos, muito sabiamente respondeu: “Que bom então; a senhora deveria dar um exemplo melhor”. Quem deu o exemplo foi o policial, de ética e moderação, o que verdadeiramente se espera de um policial.

Como se percebe, por outro lado, o exemplo da mãe desembargadora a seu filho não condiz com o comportamento de alguém que julga os processos alheios e deve primar pelo equilíbrio, justiça e igualdade. Pareceu faltar aquele diálogo pregado pelo autor argentino. A história lembra também aquele e-mail que circula constantemente, onde, no primeiro quadrinho, os pais, na década de 50 ou 60, tiram satisfação com o filho por conta de notas baixas, depois de conversarem com a professora. E, no segundo quadrinho, os pais tiram satisfação com a professora, sem ouvi-la, por conta das notas baixas do filho. Na década de 2000.

O policial deve ser parabenizado. Trouxe, de singela forma, exemplo de ética, mostrou como o ser humano pode ser realmente admirável mesmo em situações adversas, como pode mudar os rumos do seu destino. Com uma frase trouxe à tona o pensamento ético, aquele que trata dos valores morais e dos princípios ideais da conduta humana.

É esse o comportamento que se espera do policial, do magistrado, do advogado, do político, do médico, enfim, de qualquer cidadão.

Em especial do magistrado, cujo Código de Ética determina a obediência aos princípios da cortesia, da integridade profissional e pessoal, da dignidade, da honra e do decoro, entre outros. O Código de Ética da Magistratura estabelece, ainda, que ao magistrado impõe-se primar pelo respeito à Constituição da República e às leis do País, buscando o fortalecimento das instituições e a plena realização dos valores democráticos.

Bom lembrar, por fim, que os ditames éticos e a vida pautada pelo respeito aos outros e a si próprio devem fazer parte do cotidiano de todos, assim como a liberdade de cada um de perseguir seus direitos sempre que se sentir ofendido. Seja qual for a natureza da ofensa ou o suposto grau de poder do ofensor.

Texto publicado no Jornal O Correio do Povo, desta quarta-feira.
Para quem ainda não viu o vídeo, clique aqui.

Um comentário:

Anônimo disse...

Texto primoroso. Perfeito. Quando assisti o video pela primeira vez, também falei pro meu filho sobre o exemplo de postura profissional dado por aquele policial. Engraçado que os bons exemplos parece que passam batido. Ainda bem que o autor desse texto colocou os pontos nos is, e com muito brilhantismo, diga-se de passagem. Parabéns ao policial, e sentidos pêsames para o "carteiraço" que, graças a Deus foi obstaculizado pela ética e profissionalismo, na hora certa. E a você, amigo, ótimo post.
Beijo grande.