Bacafá

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quarta-feira, 1 de julho de 2009

Mamãe, eu quero.

Texto de Samantha Buglione.
(PROFESSORA DE DIREITO E DO MESTRADO EM GESTÃO E POLÍTICAS PÚBLICAS DA UNIVALI)
http://samanthabuglione.blogspot.com/

Lido no A Notícia.

1. Um heliponto para eu poder pousar meu “meio de transporte” sempre que eu precisar e quiser, seja de dia ou de noite, bem ao lado do meu apartamento, em área residencial, sem qualquer problema de impacto de vizinhança, segurança ou barulho. Afinal, eu tenho direito de ir e vir.

2. Uma Vila Olímpica, em área residencial, para matar meu desejo de ser atleta e ter à minha disposição quadras e mais quadras de esporte e piscina de tamanho olímpico, mesmo que invada área de preservação permanente, derrube árvores e incomode os outros. Não podemos esquecer que a saúde é um direito fundamental e o meu bem-estar também.

3. Uma casa milionária na beira da praia sem precisar fazer fossa ou qualquer tratamento de esgoto, podendo ligar os canos dos meus dejetos diretamente no mangue. Até porque preservar o meio ambiente é coisa de ecochato.

4. Fazer festa no meio de um bairro quieto, ganhar milhares de reais, sair no jornal, pagar hotel para autoridade não me incomodar, e não deixar os pobres mortais dormirem todo o final de semana. Afinal, eu tenho direito ao desenvolvimento da minha personalidade.

5. Eu quero tudo o que eu quero e não quero me responsabilizar por nada. Quero sempre lucrar, tudo em nome do progresso, da geração de emprego e da necessidade. Mesmo que isso destrua, importune, inferne, polua, o importante é me dar bem.

6. Quero poder montar empresas em Anitapólis, custe o que custar, destrua o que destruir, desagrade a quem desagradar. Afinal, os amigos do rei estão felizes.

7. Quero baixar música da internet, plagiar monografia, me formar sem esforço, dirigir bêbado e, se matar alguém, não ter culpa. Afinal, o cara atropelado era um atleta “drogado”.

8. Quero ser o orgulho da mamãe e do papai, o espertinho.

9. Quero passar a perna em flanelinha, enganar a polícia e sonegar imposto.

10. Quero ser um visionário, ganhar causa na Justiça e confiar na Justiça.

11. Quero virar nome de rua, ser profissional sem diploma, ter dinheiro no e aparecer em revista de celebridade.

12. Mamãe, querida, eu quero fazer tudo o que eu quero e deixar a minha assessoria, meu network e meus advogados pensarem nas consequências dos meus atos. Só me importa os louros, não me diz respeito a corrupção que eu alimento, nem a fome que eu gero ou os danos que eu provoco. Eu só quero me lembrar dos euros que ganhei, da fama que conquistei e de dormir tranquilo nos meus lençóis de algodão egípcio.

***

Parece piada, mas esses casos são reais. Se alguns querem tanto de mamãe é porque o papai Estado e o papai “bons modos de dentro de casa” andam deixando as coisas acontecerem sem limite. O direito deveria ser a prudência que evita condutas que provocam o desequilíbrio.

A ideia do direito como guardião da Justiça é uma belíssima imagem que nos remete a uma instituição que preserva a igualdade, que trata os sujeitos a partir de critérios imparciais e evita, assim, os privilégios. O desequilíbrio provocado pelos excessos das condutas humanas é o que gera a tragédia. O trágico não era a morte, a resistência, a dor, mas tudo que ultrapassava o razoável. Exatamente como acontece hoje. O desejo de alguns está gerando danos em demasia. E isso gera a tragédia.

A lei, a cada dia, é banalizada. Virou figurativo em história de ficção. Cansei de ter aluno em faculdade de direito com zero em prova que teve o papai vindo reclamar da nota do pobre rapaz.

Alguns querem tudo, menos o que caracteriza um ato de vontade genuíno: a possibilidade de ser responsável. Parece que vivemos um novo absolutismo, no qual o arbítrio econômico faz as regras. Isso é violento.

Se nem a mamãe nem o papai tentarem dar um jeito no guri e se nem ele próprio perceber que está na hora de parar de ser um mimado, talvez a vida venha a lhe dar uns “relhaços”, mas creio que essa hipótese também é uma ficção, no caso uma ficção romântica. Até porque, hoje em dia, a impunidade é outro sintoma da cultura do mais forte. Uma cultura em que todos nós, em alguma medida, pela ação ou omissão, somos cúmplices.

É como uma nova era da banalização do mal, só que agora banalizamos a externalidade das nossas ações. Ignoramos, por exemplo, que não é suficiente fechar o vidro do carro para que o que se passa fora não vir a nos afetar.

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